As provas que ligam Michelle Bolsonaro ao Caixa 2 da Presidência

Do Metrópoles

As infiltrações no teto, os móveis terrivelmente deteriorados e o piso de jacarandá esburacado e sem manutenção são só a face aparente de uma fase do Palácio da Alvorada que, embora não tenha nada de áurea ou épica, a história não poderá jamais esquecer.

Para além dos já conhecidos estragos deixados para trás, nos quatro anos em que esteve à disposição de Jair e Michelle Bolsonaro, o prédio projetado por Oscar Niemeyer para ser a principal residência da Presidência da República do Brasil foi lugar de confusões barulhentas, assédio moral a funcionários e de transações financeiras pouco usuais que vão ao encontro das suspeitas de caixa 2 reveladas há duas semanas pela coluna e que, neste momento, estão sob investigação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo

Tribunal Federal.

Relatos de quem viveu o cotidiano do palácio nos últimos anos, documentos e outros registros inéditos, como gravações e mensagens de WhatsApp, revelam segredos do período em que a residência oficial foi ocupada pelos Bolsonaros e escancaram a diferença abissal entre o discurso público do ex-casal presidencial e o comportamento adotado longe dos holofotes, por detrás das vidraças do Alvorada.

Para esta reportagem, ao longo das últimas semanas entrevistamos vários funcionários do palácio, incluindo militares. Alguns aceitaram gravar depoimentos, desde que não tivessem suas identidades reveladas. Outros concordaram apenas em contar o que viram, sem registro em vídeo.

De cima a baixo na hierarquia do Alvorada, do restrito staff que servia à família até, literalmente, a turma que cuida dos gramados onde passeiam as emas, há histórias ilustrativas de um lado do poder que destoa – e destoa bastante – daquele que é exibido costumeiramente ao distinto público.

Histórias como as do pastor evangélico amigo de Michelle presenteado com o cargo de administrador do palácio que esculhambava os subordinados e ameaçava até suspender o lanche de quem ousasse questioná-lo — tudo, segundo ele próprio disse em uma reunião gravada às escondidas, com aval da então primeira-dama.

Há mais. Michelle, com alguma frequência, protagonizava brigas colossais com Carlos e Jair Renan, os filhos 02 e 04 de Jair Bolsonaro. Numa dessas confusões, na frente dos empregados, o 04 precisou ser contido pelo pescoço por um segurança.

Bolsonaro, em um dia de fúria, arrombou a adega do palácio – sim, o então presidente da República pôs abaixo, com o pé, a porta do cômodo onde fica guardado o estoque de vinhos da residência oficial.

Já nos estertores do governo, funcionários da confiança de Bolsonaro e de Michelle levaram embora caixas e mais caixas de picanha, camarão e bacalhau comprados com dinheiro público que estavam armazenadas na câmara frigorífica anexa à cozinha.

Ainda nos últimos dias de 2022, moedas jogadas por turistas no espelho d’água que enfeita a entrada do Alvorada foram “pescadas” e carregadas pelo “síndico” do palácio, também com autorização de Michelle – supostamente para serem doadas a uma igreja.

Alguns dos episódios, ainda que relevantes, são quase pitorescos. Mas há outros graves – ou gravíssimos. Os funcionários relatam como se dava o fluxo de dinheiro – dinheiro vivo – entre o Palácio do Planalto e o Alvorada para bancar despesas privadas da primeira-dama e de seus parentes.

Com regularidade, várias vezes por mês, a equipe encarregada de auxiliar Michelle recebia a incumbência de passar no Planalto para pegar os recursos, em espécie, na sala do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Cid, o agora notório ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

Cid, que após a reportagem publicada aqui no último dia 20 tornou-se o pivô da queda do comandante do Exército, é investigado, entre outras coisas, pela suspeita de gerenciar o caixa 2 palaciano com verbas que tinham como origem, inclusive, saques feitos na boca do caixa com cartões corporativos do governo.

Mensagens obtidas com exclusividade pela coluna mostram que bastava um pedido de Michelle para que Cid autorizasse os assessores da primeira-dama a retirarem o dinheiro, no Planalto, com algum dos militares que integravam seu time na ajudância de ordens do então presidente da República. Também era ele quem providenciava depósitos, igualmente em dinheiro vivo, na conta pessoal da mulher de Jair Bolsonaro.

Há evidências, ainda, de que Michelle, primeira-dama do Brasil até 31 de dezembro passado, recebia com regularidade, no Alvorada, envelopes de dinheiro enviados por Rosimary Cardoso Cordeiro, amiga íntima que no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro viu seu salário de assessora no gabinete de um senador governista ser quase triplicado.

Os indícios, que poderão ser esquadrinhados minuciosamente na investigação em curso no STF, apontam para mais uma “rachadinha” no ex-clã presidencial.

Áudios e outros registros aos quais a coluna teve acesso comprovam que assessores de Michelle no Palácio da Alvorada tinham por tarefa pegar com Rosi – seja no prédio dela, no Riacho Fundo, região administrativa do DF, seja em um ponto de encontro entre o Planalto e o Congresso Nacional — os envelopes recheados de notas de reais.

Se para o público externo a ex-primeira-dama tentava se mostrar sempre afável e sorridente, quem convivia com ela na intimidade do Alvorada relata uma rotina bem diferente, cheia de sobressaltos.

Descrita como uma pessoa temperamental, de humores que mudavam de supetão, Michelle costumava destratar a equipe de funcionários escalada para auxiliá-la. Algumas assessoras chegaram a pedir para deixar o trabalho, queixando-se da maneira como eram tratadas.

Pelo menos uma delas cogitou processar a então primeira-dama por assédio. Acabou desistindo do plano por entender que não teria força para levar adiante uma querela judicial contra alguém que, àquela altura, estava no topo do poder. Outra assessora foi embora sem ouvir nem sequer um obrigado.

O relacionamento difícil de Michelle com o staff que a atendia mais proximamente se refletia nas demais relações de trabalho dentro do palácio, inclusive naquelas que envolviam pessoas simples, como jardineiros e funcionários da limpeza.

O Alvorada está num terreno que equivale a 50 campos de futebol, à beira do Lago Paranoá. De área construída, o edifício inaugurado em 1958 tem 7 mil metros quadrados, distribuídos em três pavimentos. Para funcionar, a megaestrutura palaciana conta com uma tropa de empregados, civis e militares. São cerca de duas centenas de pessoas, que cuidam do atendimento mais direto aos inquilinos de momento – há maître, garçons, cozinheiros, camareiros, motoristas – e dos serviços de manutenção predial e dos jardins.

Em fevereiro de 2021, a tarefa de comandar a máquina do Alvorada foi confiada por Michelle ao pastor Francisco de Assis Castelo Branco, próximo da família desde os tempos em que ela e Bolsonaro moravam no Rio. Francisco, ou Chico, como era chamado na intimidade do clã, é marido de Elizângela Castelo Branco, intérprete de Libras que, de tão íntima da ex-primeira-dama, chegou a acompanhá-la na viagem de fim de ano à Flórida. Ainda no Rio, Michelle, Elizângela e Francisco integravam um núcleo da Igreja Batista Atitude voltado à comunidade surda.

Com a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, o casal se mudou para Brasília e foi empregado no governo. Francisco ganhou primeiro um cargo no Planalto, com salário de R$ 5,6 mil. Depois, foi transferido para o Alvorada ganhando quase o dobro. Na função de coordenador do palácio, ganhou dos empregados o epíteto de “pastor-capeta” pelo rigor com que tratava os subordinados. A fama de mau não demorou a vir, graças à maneira como lidava com empregados e às sucessivas demissões que promoveu. Teve gente que foi mandada embora porque levou para casa algumas mangas do pomar do palácio – o que antes da chegada dele era algo corriqueiro. “Ele assediava as pessoas e ameaça de demissão o tempo todo. E dizia que a primeira-dama tinha conhecimento de tudo e autorizava essa postura”, afirma um dos funcionários que aceitaram dar entrevista (assista, a seguir, a um dos depoimentos).

No ano passado, o pastor convocou uma reunião com os empregados da empreiteira contratada pelo governo para cuidar da jardinagem do Alvorada. O motivo: ele queria chamar a atenção de funcionários que haviam se queixado porque estavam sendo obrigados a limpar um banheiro de serviço – como eram contratados para cuidar do jardim, alguns alegavam que estavam em desvio de função. Sobrou para todos. Em 25 minutos de monólogo, Francisco desfilou a arrogância que lhe rendeu o apelido indesejado. “Quem não pode limpar o banheiro não pode nem cagar. Caga no mato, então, caga em casa. Entendeu? Usa aquela bolsa. Porque é sacanagem isso”, estrilou. Ele ameaçou cortar o lanche que era oferecido diariamente ao grupo. O pastor ainda explicou, do seu modo, sem papas na língua, por que empregados da Novacap, a companhia urbanizadora de Brasília, haviam sido cortados do Alvorada: além de “velhos”, disse, eram “preguiçosos”. O tom de ameaça era explícito (ouça a seguir os principais trechos da reunião).

A decisão de proibir os funcionários de escalão mais baixo de entrar na área do palácio portando telefones celulares gerou situações desagradáveis. Uma senhora passou o dia sem saber que um parente havia morrido, relata um ex-empregado. Ela só recebeu a notícia ao final do expediente porque o administrador não havia nem sequer deixado um telefone por meio do qual os funcionários poderiam ser acionados por familiares em caso de emergência. “Ele destratava os empregados, especialmente os mais humildes”, diz um militar que lidava com frequência com o pastor.

O sumiço da picanha e das “moedas da sorte”

O pastor Francisco também é personagem de dois episódios ocorridos no Alvorada já nos derradeiros dias do governo Bolsonaro e que, até agora, eram conhecidos apenas por quem vive os bastidores do palácio.

Na primeira visita que fez à residência após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, a atual primeira-dama, Janja da Silva, e seus auxiliares disseram que não teriam interesse nos mantimentos perecíveis – comprados com dinheiro público – que os Bolsonaro deixariam na despensa. Janja, então, autorizou os funcionários a dividirem o farnel entre si. Ocorre que foram poucos, ou pouquíssimos, os que se beneficiaram.

Funcionários relatam que os itens de maior valor, como carnes nobres – peças de picanha e filé mignon, por exemplo – e fardos de camarão e bacalhau, simplesmente desapareceram. Testemunhas dizem que um grupo restrito de funcionários ligados à administração fez a limpa na despensa, sem compartilhar com os demais.

Numa adaptação para os trópicos de um costume típico de atrações como a Fontana di Trevi, em Roma, turistas que visitam o Alvorada jogam moedas no espelho d’água que decora a frente do palácio presidencial. É um gesto que, diz a crença popular, traz sorte. Pouco antes de os Bolsonaro deixarem o palácio, funcionários receberam uma ordem para esvaziar o fosso e juntar as milhares de moedas acumuladas ali. Pastor Francisco – de novo ele – foi quem tomou a frente. Disse que o pedido havia sido feito por Michelle Bolsonaro.

A “pescaria” rendeu um balde cheio – não se sabe exatamente quanto havia. Funcionários dizem que Francisco levou as moedas embora, dizendo que as doaria para uma igreja. “Se ele doou ou não, não sei, mas ele falou que era a mando da Michelle”, relata um empregado do palácio. O pastor Francisco, a despeito da amizade íntima com o casal Bolsonaro, até se movimentou para ficar no Alvorada de Lula. Não conseguiu. Foi exonerado no último dia 5 de janeiro.