O almirante de esquadra Almir Garnier quebrou a rotina de clausura que havia se imposto nos últimos meses na sexta-feira, 1º de março. Desde que foi enredado como um dos principais operadores militares de uma tentativa de golpe de Estado, o ex-comandante da Marinha raras vezes havia sido visto em público. Seguia uma rígida lista de recomendações para evitar exposição desnecessária, não concede entrevistas e mantém silêncio sobre as acusações de que alimentou planos para garantir a permanência de Jair Bolsonaro no poder. Aquele dia, porém, era diferente. Mais magro, usando roupa de ginástica e óculos escuros, ele estava sentado sozinho na mesa de uma confeitaria a menos de 300 metros de sua casa, em Brasília, onde permaneceu por mais de uma hora. Nesse período, falou ao telefone durante um bom tempo, caminhou pelo estabelecimento, bebeu água com gás, comprou uma bandeja de salgadinhos e foi embora sem ser notado. Não parecia preocupado com o que acontecia a alguns quilômetros dali — mas deveria.
Naquele mesmo instante, na sede da Polícia Federal, o ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes prestava esclarecimentos no inquérito que investiga se Jair Bolsonaro atuou para reverter o resultado das eleições presidenciais de 2022. Poucos depoimentos eram tão aguardados quanto o do general. Testemunha de uma reunião em que os chefes militares teriam discutido com o então presidente da República detalhes de uma suposta trama golpista, Freire Gomes havia sido apontado pelo tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente, como o esteio da caserna contra a sublevação. O general foi ouvido na condição de testemunha e confirmou ter participado de uma reunião no dia 7 de dezembro de 2022, no Palácio da Alvorada, em que se discutiu a edição de uma medida que previa a anulação das eleições presidenciais, a convocação de outra e a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal.
A reunião — e o que foi discutido nela — é considerada a evidência mais contundente de que Bolsonaro, em certo momento, no mínimo flertou com a possibilidade de uma virada de mesa. O que no início era uma suspeita começou a ganhar contornos nítidos de materialidade a partir do momento em que Mauro Cid fechou um acordo de colaboração com a polícia. O ex-ajudante de ordens, que ficou preso durante quatro meses até decidir cooperar, tinha acesso praticamente irrestrito a tudo o que acontecia nos palácios do Planalto e da Alvorada. Ele acompanhava de perto a rotina da família, ouvia segredos e esteve presente nos derradeiros e mais tensos momentos do governo. Nos últimos meses, o tenente-coronel prestou cinco depoimentos à PF. No mais importante deles, revelou os bastidores da conspirata que poderia ter mudado drasticamente a história do país e que, agora, pode apontar para certos personagens — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro — o caminho da prisão.
VEJA teve acesso aos principais trechos do depoimento de Mauro Cid. A maioria das informações já veio a público, mas seus detalhes, inéditos, são assustadores, muitos deles parecem surreais, e o conjunto revela o nível de desatino de uma confraria que colocou na cabeça que as eleições de 2022 haviam sido fraudadas e que era preciso fazer algo para impedir a posse de Lula. O ex-ajudante de ordens contou que, em novembro, dias depois de anunciado o resultado, participou de uma reunião comandada por Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Nela, o então assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Filipe Martins, apresentou ao presidente sugestões para a edição de um decreto que “retratava as interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo” e autorizava a prender “todo mundo”. Entre os alvos específicos estavam os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, além do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco. Em seu depoimento, Cid não informa quem seria “todo mundo”, mas a ideia, segundo ele, era prender “autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente”.
A minuta de decreto também anulava o resultado das eleições e estabelecia a convocação de um novo pleito. O motivo seria a comprovação de que as urnas eletrônicas haviam sido violadas — obsessão paranoica repetida várias vezes pelo então presidente. Participaram dessa primeira reunião Bolsonaro, Cid, Martins e “juristas”. Filhote do falecido Olavo de Carvalho, Martins fez uma longa explanação. Depois, o presidente recebeu uma cópia do documento, leu e sugeriu alterações. Uma delas, como se sabe, foi excluir Gilmar Mendes e Rodrigo Pacheco da lista de alvos a serem detidos. Dias depois, Martins retornou ao Alvorada, acompanhado do advogado Amauri Saad, uma espécie de consultor jurídico do grupo. Ele mostrou a Bolsonaro a nova versão do decreto com as mudanças sugeridas pelo presidente, que leu e — detalhe — aprovou a minuta. Ato contínuo, sempre de acordo com o depoimento de Cid, Bolsonaro convocou para o mesmo dia uma reunião com os comandantes do Exército, general Freire Gomes, da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Junior, e da Marinha, almirante Almir Garnier. Dessa nova — e fundamental — reunião emergiram os indícios que colocam os chefes militares no centro da trama.
Mauro Cid contou que Filipe Martins explicou aos comandantes item a item do documento redigido com o aval do presidente. Não falou em prisões, anulação de eleições nem em outra medida radical. Nessa etapa da reunião, além dos militares, do presidente e do assessor internacional, estavam o ajudante de ordens e Amauri Saad. Depois ficaram na sala apenas o presidente e os três chefes militares. Cid afirma que soube por Freire Gomes que Bolsonaro pressionou os comandantes para saber o que eles achavam do decreto golpista. O general e o brigadeiro, segundo ele, não gostaram do que ouviram, o que teria, mais tarde, sepultado a ideia de uma intervenção. Já a situação de Almir Garnier é, para dizer o mínimo, mais delicada. Em sua colaboração, Mauro Cid disse que ouviu do general Freire Gomes o relato de que o almirante, ao contrário dos outros dois, teria colocado as tropas à disposição. “Os referidos elementos corroboram os fatos descritos pelo colaborador Mauro Cesar Cid, quando revelou que o então comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, em reunião com o então presidente Jair Bolsonaro, anuiu com o golpe de estado, colocando as tropas à disposição”, registrou a Polícia Federal em relatório.
Desde que passou a ser caracterizado como o militar de mais alta patente a dar guarida à trama, Garnier recebeu relatos de que dificilmente escapará da mão pesada de Alexandre de Moraes. A colegas de farda, muito tranquilo, o militar tem dito que Bolsonaro recebia toda sorte de propostas golpistas, mas que não as levava a sério. O depoimento de Cid, porém, o deixa numa situação bastante desconfortável. De um lado, um presidente ansioso por permanecer no cargo e dado a arroubos de todos os tipos. De outro, o mais alto chefe de uma corporação militar disponibilizando seus recursos para atender à vontade do governante: um golpe. Alguns chegam a defendê-lo dizendo que ele falou nas tropas apenas como bravata, uma maneira de agradar a Bolsonaro. Difícil engolir uma piada no meio de uma situação de tão alta octanagem como essa. “Mesmo como bravata, Garnier jamais falou que endossava um golpe”, defende, sob condição de anonimato, um interlocutor do ex-comandante. Embora minimize o episódio, ele deve ser indiciado, assim como o ex-presidente, por tentativa de abolição do estado de direito, crime que prevê até oito anos de prisão. Tal cenário tem gerado incômodo e constrangimento para as Forças Armadas. Os três comandantes já foram intimados a depor. Freire Gomes foi o último a ser ouvido. Antes dele, Baptista Junior já havia prestado um longo depoimento, que também é mantido em sigilo. Ambos ajudarão a elucidar o que aconteceu naquele dia e, possivelmente, dar mais elementos para uma provável prisão de Bolsonaro. Garnier, claro, optou pelo silêncio. A defesa do almirante alegou que não teve acesso aos autos, um direito de quem é investigado. Agora, a Polícia Federal vai decidir se os militares atuaram ativamente com o intuito de ameaçar a democracia ou se o que fizeram se enquadra apenas como omissão. Mauro Cid deve depor mais uma vez na semana que vem. Usando tornozeleira eletrônica e recolhido quase o tempo todo em sua casa no Setor Militar, em Brasília, ele tem sido alvo de ameaças por parte de bolsonaristas e convive com o desprezo dos colegas de farda. “O Exército não tolera alcaguetes”, diz um graduado oficial. “Não sou traidor, nunca disse que o presidente tramou um golpe. O que havia eram propostas sobre o que fazer caso se comprovasse a fraude eleitoral, o que não se comprovou e nada foi feito”, disse ele, em sua lógica muito peculiar, a uma pessoa próxima.
A lista de figurões suspeitos de envolvimento nessa conspiração é grande (veja o quadro), e outros personagens podem ganhar ainda mais destaque nas próximas semanas. A rigor, desde o início da administração Bolsonaro havia um flerte do então presidente e seu círculo mais próximo com uma ruptura institucional. Garnier, por exemplo, já esteve na crista de uma controvérsia em agosto de 2021. O almirante não escondia as pretensões de assumir o posto de ministro da Defesa. Na caserna, era criticado por ter se encantado demais pelas delícias do poder em geral e pelo presidente da República em particular. Numa notória demonstração de servilismo, ele organizou um desfile de tanques pela Esplanada dos Ministérios na época em que o Congresso votava um projeto para a adoção do voto impresso, um dos moinhos de vento do ex-presidente na sua alucinada cruzada contra o Judiciário. Na ocasião, o comandante negou que o espetáculo bizarro embutisse uma ameaça velada às instituições. Teria sido apenas “coincidência”. À luz do que se sabe hoje, ninguém daria o mínimo crédito a essa versão.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883