Quem nunca disse a frase “não fui com a cara dele” ou “o santo não bateu”? Essa sensação de antipatia imediata, muitas vezes chamada de “ranço”, surge mesmo sem convivência anterior ou um motivo claro. Isso ocorre porque o cérebro está o tempo todo fazendo julgamentos rápidos: em segundos avalia expressões faciais, tom de voz e postura para decidir se alguém transmite confiança ou não.
O sociólogo Tony Gigliotti Bezerra, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), destaca que essa antipatia imediata pode refletir estigmas sociais. “Alguns grupos são historicamente estigmatizados, como mulheres, pessoas negras, LGBTs ou pessoas com deficiência. Muitas vezes, a antipatia imediata está ligada a preconceitos enraizados, como racismo e machismo”, explica.
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Ele lembra que esses estereótipos são transmitidos de geração em geração, inclusive em ditados populares com conteúdo discriminatório. “Se as pessoas podem ser ensinadas a odiar, também podem ser ensinadas a amar”, cita, reforçando que a desconstrução de preconceitos depende de educação inclusiva.
Além disso, Tony ressalta que normas sociais e a pressão de grupo podem reforçar esse comportamento. “No ambiente policial, por exemplo, existe um racismo institucional que aumenta a chance de pessoas negras sofrerem abordagens violentas. Já em contextos machistas, piadas preconceituosas funcionam como mecanismos de coesão social, aproximando uns e afastando outros”.
Para o psicólogo Douglas Kawaguchi, do Hospital Sírio-Libanês, o ranço imediato é resultado de dois tipos de processamento cerebral: o rápido, intuitivo e primitivo (cognição tipo 1), e o mais lento e racional (cognição tipo 2). “A antipatia inicial nasce da cognição tipo 1, que age antes mesmo de uma análise racional”, afirma.
Ele explica que experiências passadas também influenciam, já que lembranças inconscientes podem ser reativadas quando encontramos alguém que nos recorda de situações desagradáveis.
Segundo Kawaguchi, o ranço pode ser tanto uma forma de autoproteção quanto um viés comportamental. “Quando não é questionado, esse julgamento pode se transformar em preconceito ou hostilidade”, enfatiza.
A psicóloga Marcela Godoi Silva, analista do comportamento clínico, reforça que nossas reações são fruto de aprendizados ao longo da vida. “Generalizamos experiências negativas e projetamos características em pessoas que sequer conhecemos. Isso dá a impressão de que o ranço é algo automático, mas, na verdade, é um reflexo de vivências anteriores e de aprendizados culturais”, explica.
Ela alerta que, quando esses julgamentos não são elaborados, podem gerar impactos sociais e emocionais graves, como exclusão, bullying e até quadros de depressão e ansiedade. “É possível reduzir essas reações com autoconhecimento. Quando compreendemos nossa história e nossos filtros, conseguimos ressignificar comportamentos automáticos e dar uma segunda chance a quem não agradou de início”.
O ranço, portanto, é um fenômeno que combina biologia, comportamento e sociedade. Se, por um lado, é resultado de mecanismos cerebrais criados para garantir proteção, por outro também carrega os estereótipos e preconceitos que atravessam a vida em sociedade.
Saber reconhecer esse processo pode ser um primeiro passo para evitar injustiças e transformar a antipatia automática em uma oportunidade de reflexão e empatia.
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Fonte: Metrópoles