Os comentários do presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, em Jackson Hole, sugerindo a possibilidade de um corte iminente nas taxas de juros, deveriam ter soado música para os ouvidos do presidente Donald Trump.
No entanto, dias depois de Powell fazer um dos discursos mais importantes do calendário financeiro, o presidente do Fed estava digerindo as notícias da última reviravolta em uma batalha latente entre o banco central e o governo Trump, quando o presidente norte-americano disse que estava demitindo uma de suas autoridades, Lisa Cook.
A primeira tentativa de demitir um governador do Fed, somada às críticas públicas de Trump a Powell, representa ameaças claras à independência do banco central, que já dura 111 anos, não vistas desde o governo Nixon.
Investidores especulam sobre até onde Trump pode ir, o que pode resultar de uma batalha judicial subsequente e o impacto disso nos mercados, no dólar e na dívida norte-americana.
Um porta-voz da Casa Branca disse à CNN Internacional que dados econômicos mostram que as políticas de Trump reduziram a inflação.
“O presidente deixou claro que é hora de o Fed responder a esse fato objetivo cortando as taxas, oferecendo o alívio necessário nas taxas de juros às famílias americanas e apoiando o emprego e o crescimento econômico”, disse o porta-voz.
As motivações de Trump para tentar influenciar o Fed — um ambiente de taxas de juros mais favorável que incentive os gastos e o crescimento do PIB — não são novas, assim como as prováveis consequências se ele conseguir o que quer.
“É muito importante que os americanos entendam o quão perigoso isso é”, disse a ex-presidente do Fed e ex-secretária do Tesouro, Janet Yellen, a Jake Tapper, da CNN Intyernacional, na quinta-feira.
Turquia
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, oferece um exemplo de líderes autoritários que tentam intervir na política monetária. A visão pouco convencional de Erdogan de que a maneira de controlar a inflação era reduzir as taxas de juros levou, sem surpresa, a uma inflação em espiral e, por fim, ao colapso da lira turca.
No espaço de 20 meses, entre julho de 2019 e março de 2021, Erdogan demitiu Murat Cetinkaya, Murat Uysal e Naci Agbal dos cargos de chefes do banco central da Turquia.
“Desde 2018, sempre que um governador de banco central decidia aumentar as taxas de juros ou mantê-las por mais tempo do que Erdogan queria, Erdogan basicamente o demitia”, disse Adam Michalski, pesquisador do Centro de Estudos Orientais, à CNN Internacional.
Na época da demissão de Agbal, em março de 2021, a taxa de inflação na Turquia era de 16,7%. Em outubro de 2022, a taxa atingiu o pico de 85,5%. Esses aumentos de preços precipitaram cortes repetidos na taxa básica de juros da Turquia, que caiu para um mínimo de 8,5% em fevereiro de 2023.
A lira turca foi sustentada durante grande parte dessa turbulência pelo uso de reservas em moeda estrangeira, o que colocou a Turquia à beira de uma crise de dívida. O país gastou cerca de US$ 60 bilhões tentando sustentar a lira.
A frustração pública com a inflação forçou Erdogan a adotar uma política monetária mais convencional em 2023. A Turquia aumentou as taxas de juros para um pico de 50% em março de 2024, e atualmente elas estão em torno de 43%. As taxas de hipoteca para casas turcas estão agora acima de 40%.
A remoção do apoio à lira fez com que a moeda despencasse, pressionando ainda mais os preços.
Mas isso não significa que Erdogan parou de interferir no banco central.
“Esta ainda é uma decisão política de Erdogan”, diz Michalski. “Nunca se sabe quando Erdogan vai decidir: ‘a economia está suficientemente estabilizada, vamos voltar àquela política controversa de juros baixos’.”
Embora a inflação crescente, a desvalorização da moeda e as altas taxas de juros tenham afetado as empresas turcas e sua capacidade de fazer negócios no exterior, os mais pobres foram os mais afetados.
Cerca de 9 milhões de trabalhadores turcos ganham o salário mínimo de 22.104 TRY líquidos por mês, o equivalente a cerca de US$ 538.
“Para eles, a vida não melhorou na última década”, disse Michalski.
Argentina
A Argentina teve uma experiência semelhante, disse Hans-Dieter Holtzmann, diretor de projetos na Fundação Friedrich Naumann.
“No final das contas, depende de quem é o presidente argentino, qual é sua prioridade e seu principal interesse econômico”, disse Holtzmann à CNN Internacional.
De fato, os presidentes do Banco Central da Argentina são tradicionalmente destituídos de seus cargos após uma eleição presidencial na Argentina. Como resultado, desde 2013, o BCRA teve oito presidentes. No mesmo período, os Estados Unidos tiveram três.
Durante grande parte do século XXI, o BCRA atuou para apoiar os objetivos financeiros do governo argentino, que consistiam, em grande parte, no financiamento de um déficit.
O banco central imprimiu dinheiro para financiar o déficit da Argentina, levando à hiperinflação que atingiu o pico de 292% em abril de 2024.
Desde que Javier Milei foi eleito em 2023, o presidente argentino adiou a promessa eleitoral de fechar o banco central e, em vez disso, apoiou a meta de estabilidade de preços do BCRA.
“Milei percebeu logo que a independência do banco central é fundamental para preservar não apenas a estabilidade monetária, mas também a estabilidade da moeda”, disse Davide Romelli, professor associado do Departamento de Economia do Trinity College Dublin, que monitora os níveis de independência em 155 bancos centrais.
O foco na estabilidade de preços, juntamente com austeridade e reforma monetária, mostrou-se notavelmente eficaz. A inflação caiu para 36,6% em julho. No mesmo mês, a Moody’s elevou a classificação de crédito da Argentina, aumentando a confiança dos investidores na manutenção da dívida pública.
Holtzmann tirou lições claras da perturbação na Argentina.
“É uma lição que pode ser aprendida com a Argentina: se não houver um caminho claro para o banco central fazer suas análises e combater a inflação, a reputação [de um país] pode ser rapidamente destruída, o que pode levar a uma espiral descendente. Aí, o risco-país aumenta e, de repente, você não tem mais acesso ao mercado de capitais.”
Os EUA da década de 70
O Fed já lidou com ameaças à sua independência no passado, mas nada no nível da Turquia e da Argentina.
Em 1970, o presidente Richard Nixon demitiu o presidente do Fed, William McChesney Martin, no lugar do republicano e ex-conselheiro presidencial Arthur Burns.
Burns e o Fed expandiram a oferta monetária na economia americana em um ano eleitoral, após uma recessão no governo Lyndon B. Johnson. Não há evidências definitivas de que Burns tenha se envolvido em expansão monetária a mando de Nixon, mas as consequências macroeconômicas dessa política são mais claras.
“Independentemente da fonte final da motivação de Arthur Burns, suas ações como presidente do Federal Reserve ajudaram a desencadear um ciclo inflacionário de expansão e retração extremamente custoso”, escreveu Burton A. Abrams, professor emérito de economia na Universidade de Delaware, em 2006 .
A inflação subiu de 3,3% em 1971 para 11,8% em 1974. Os cortes de fornecimento de petróleo pela OPEP, a remoção dos controles governamentais de salários e preços e os choques globais no fornecimento de alimentos são todos responsáveis por parte da culpa.
No entanto, “há muitas evidências de que a alta inflação dos anos 70 se deveu, em parte, ao fato de Burns nunca ter agido tão fortemente no aperto da política monetária”, disse Romelli, do Trinity College.
E se o Fed perder sua independência?
Os investidores ainda não estão convencidos de que Trump correrá o risco de demitir Powell antes do fim de seu mandato em 15 de maio do ano que vem.
Romelli disse acreditar que o que “mudará completamente a regra do jogo” seria se Trump decidisse demitir Cook mesmo que um juiz a absolvesse da acusação de fraude. Uma nota do JPMorgan de terça-feira afirmava que a demissão bem-sucedida de Cook também poderia deixar outros governadores vulneráveis à demissão .
“O que sabemos da literatura é que toda vez que há uma pressão percebida ou uma redução no grau de independência do banco central em um país, normalmente as expectativas sobre a inflação aumentam e, assim, as famílias e os analistas preveem uma inflação futura mais alta, o que pode ter um efeito prejudicial”, disse Romelli.
Um porta-voz da Casa Branca disse à CNN Internacional que Trump determinou que havia motivo para remover um governador que “foi acusado de forma crível de mentir em documentos financeiros de uma posição altamente sensível na supervisão de instituições financeiras.
“A remoção de um governador por justa causa melhora a responsabilidade e a credibilidade do Conselho do Federal Reserve tanto para os mercados quanto para o povo americano.”
George Saravelos, codiretor global de Pesquisa de Câmbio do Deutsche Bank, disse que acredita que se uma repetição da década de 1970 acontecer nos Estados Unidos, as consequências serão muito piores.
Os Estados Unidos estão gastando mais do que emprestam e importando mais do que exportam, o que é conhecido como déficit duplo, enquanto devem mais do que possuem no exterior. Investidores estrangeiros também detêm enormes quantidades de ativos americanos, que poderiam ser incentivados a vender durante períodos de crise econômica.
“Todos esses ingredientes defendem uma ruptura global significativamente maior”, escreveu Saravelos em uma nota de agosto.
O Fed tem a vantagem de ser uma instituição historicamente estável, sustentando a confiança dos investidores mesmo em meio a recentes perturbações. As salvaguardas legais do Fed, concedidas pela Lei do Federal Reserve de 1913, conferem-lhe muito mais proteção do que os bancos centrais da Argentina e da Turquia.
Mudanças concretas na percepção dos investidores sobre a independência do Fed, no entanto, ainda podem causar sérios danos.
Isso já está começando a acontecer. Carola Binder, professora associada de economia na Universidade do Texas em Austin, vê a política influenciando a cobertura do Fed com muito mais força do que no passado.
Se eles cortarem 25 pontos-base em vez de 50, as pessoas vão dizer: “Ah, eles estavam fazendo isso para ir contra Trump”. Por outro lado, se eles decidirem que precisam cortar 50 pontos, porque os dados indicam, algumas pessoas vão dizer: “Ah, eles estavam cedendo à pressão do presidente”.
“Em alguns aspectos, isso os coloca em uma situação sem saída, porque tudo o que fizerem, mesmo que seja baseado em dados, será visto como uma decisão política”, disse Binder à CNN Internacional.
O outro risco é que as ações de Trump inspirem líderes populistas em outros lugares.
A Reuters relatou comentários de vários banqueiros centrais que temem que a redução da independência dos bancos centrais nos Estados Unidos cause medidas semelhantes em outros lugares, um desenvolvimento que causaria grandes danos à economia global.
“Não está claro que nos tornaríamos, de forma óbvia e iminente, outra Turquia”, disse Binder. “Mas acho que […] é fácil para as pessoas desconfiarem do Fed, e muito mais difícil para elas recuperarem essa confiança.”
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