Halloween à brasileira: povos indígenas recontam o que chamam de folclore

No fim do mês de outubro, o Brasil passa a vestir fantasias e absorver um medo estrangeiro. Entre abóboras, travessuras e fantasmas, o “Halloween”, popularmente chamado de “Dia das Bruxas”, se espalha pelas casas e redes sociais.

Enquanto o país celebra contos e narrativas importadas, há quem recorde que o sobrenatural sempre esteve aqui, nos rios, florestas e nas vozes anciãs que ainda ecoam em diversas etnias de povos indígenas.

Para os povos originários, o que a sociedade costuma chamar de “lenda” ou “folclore” é vida real: são espíritos que ensinam, encantados que protegem e forças que se manifestam além do que os olhos humanos podem ver. Neste “Halloween à brasileira”, o desafio é inverter a lógica e ouvir os que aqui sempre estiveram e que nunca precisaram de fantasias para saberem que o invisível existe.

A CNN ouviu lideranças para entender como relatos de Saci, Curupira, Iara e Boto e tantos outros seguem vivos e porque, para essas comunidades, eles não pertencem ao campo da imaginação.

Festa híbrida e importada

Para a escritora, geógrafa, pesquisadora indígena, doutora e assessora de roteiro da série “Cidade Invisível“, Márcia Kambeba, nome que consta em seu documento, uma vez que, nascida em 1979, durante a ditadura militar, nomes indígenas ainda eram proibidos, o Halloween, tal como é celebrado no Brasil, é uma prática importada que acaba se misturando e, por vezes, sobrepondo outras expressões culturais.

“Esse Halloween que as pessoas comemoram, que se vestem de preto, que se pintam, é uma prática importada, que não é nossa. E quando chega essa data em solo brasileiro, ele se transforma, se mistura com outros símbolos locais, inclusive até as pessoas confundem muito, né? E procuram se adaptar ao contexto escolar, comercial e também urbano”, diz à CNN.

Pesquisadora da narrativa oral, Márcia, da etnia Magüta/Tikuna, explica que o fenômeno pode ser entendido como um exemplo híbrido de cultura, mas que também reflete processos de apagamento das espiritualidades indígenas.

“O Halloween reforça um imaginário sobrenatural eurocêntrico. Bruxas, vampiros, fantasmas, muitas vezes ignorando ou esvaziando as encantarias sobrenaturais das cosmologias indígenas, como os encantados, o espírito da floresta, a Matinta Pereira, o Curupira, o Boto, a Iara, o Mapinguari”.


Mula sem cabeça • Wikimedia Commons

Ressignificar

Para Márcia, o modo como as narrativas indígenas são tratadas nas escolas — frequentemente como mitos ou lendas — colabora para o silenciamento dos povos originários.

Ela acredita, no entanto, que o contato com o Halloween pode abrir caminhos de reafirmação cultural. “Ao interagir com o Halloween, nós podemos retomar e afirmar as nossas próprias narrativas sobrenaturais. Falar da Matinta não como essa bruxa que é pintada, mas como uma encantada, como uma mulher que cuida da floresta”, diz. Na língua Magüta/Tikuna, essa retomada de saberes é lida na expressão Ikua imitsara kana, que significa “Caminho da sabedoria ancestral”.

Inclusive, a indígena conta que histórias como a do Boto marcaram sua vida desde cedo. “Meu avô dizia ele era filho de Boto e que conheceu o mundo das águas porque foi levado pelo pai dele, que era um encantado das águas. A história vai virar o meu próximo livro, Amazônia na Proa da Canoa, que tratará desse assunto. Então, cabe aos próprios indígenas reescrever nossas narrativas, mostrando que não são folclore, lendas ou mitos, mas elementos centrais de sua cosmovisão como povo originário”, destaca.

O invisível é real e o sagrado não é entretenimento

Para a escritora, professora, integrante da Promoção do Conselho da Igualdade Racial de Ribeirão Pires/SP e cacica do povo Pataxó Hã Hã Hãe, Jaqueline Haywã, da etnia Kariri Sapuyá, enquanto o Halloween transforma o medo em diversão, a cultura dos povos indígenas ensina o respeito e a convivência com o invisível.

“Para nós, povos indígenas, o sobrenatural não é um tema de festa, e sim uma dimensão da existência. Os espíritos, os encantados e as forças da natureza estão presentes no cotidiano, orientando nossas ações e nossos cuidados com o mundo”, explica.

Como professora em uma escola não indígena, Jaqueline relata que os termos “lenda e folclore” são usados para falar de coisas imaginárias, como se não fossem reais, fazendo com que muitas pessoas, inclusive os alunos, tenham dificuldade em entender a cultura de seu povo.

“O que chamam de “mito” são, para nós, formas de conhecimento e de verdade. Essas narrativas expressam a maneira como entendemos o mundo, a natureza e o sagrado. Elas orientam nosso modo de viver, de cuidar do meio ambiente e de nos relacionar com os outros seres. Quando o não indígena reduz essas histórias a “fantasias” ou “folclore”, apaga a legitimidade de um saber ancestral que existe muito antes do Brasil ser Brasil”.

A crença na continuidade da vida inspira não só o modo de viver, mas também o de escrever. Em “Poemas para Existir“, a autora transforma essa visão em versos:

Não é fantasia. Esse estereótipo é crueldade. Cada pena representa FORÇA e RESPONSABILIDADE. Um parente que partiu para lutar na eternidade“.

Para as lideranças ouvidas, o “Halloween à brasileira”, não fala apenas sobre monstros ou fantasmas, é sobre memória, território e resistência. Para os povos que há séculos habitam estas terras, o mistério não é ficção, é presença. E talvez o verdadeiro feitiço seja justamente reaprender a enxergar o invisível que a colonização tentou apagar, respeitando as histórias e saberes tradicionais que permanecem vivos.


Saci-Pererê também é celebrado no dia 31 de outubro aqui no Brasil • Wikimedia Commons

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