Um dos esqueletos de hominínios (humanos e seus ancestrais fósseis) mais completos já encontrados no mundo, o StW 573 — carinhosamente apelidado de Little Foot — começou a ser desenterrado em 1994, quando ossos de um pequeno pé (daí o apelido) foram encontrados nas cavernas de Sterkfontein, na África do Sul.
Depois de pacientemente separado da rocha endurecida que o envolvia — processo concluído apenas em 2018 —, o esqueleto, com cerca de 3,7 milhões de anos, se tornou uma peça-chave para entender como os ancestrais do gênero Homo se locomoviam, se equilibravam e interagiam com o ambiente.
Paradoxalmente, a preservação excepcional do Little Foot deu origem a uma das maiores controvérsias da paleontologia moderna. O paleoantropólogo Ron Clarke, responsável por sua escavação e reconstrução, rejeitou a classificação tradicional, argumentando que o fóssil não deveria ser atribuída à espécie Australopithecus africanus.
Para Clarke, o Little Foot representaria uma espécie diferente — o Australopithecus prometheus —, proposto originalmente em 1948 para fósseis encontrados mais ao norte do país, em Makapansgat, mas que nunca foi plenamente aceito pela comunidade científica, que continuou tratando a espécie como sinônimo de A. africanus.
Agora, um estudo publicado recentemente na revista American Journal of Biological Anthropology testou a hipótese de que o espécime fóssil StW 573 (Little Foot) possa ser atribuído taxonomicamente a Australopithecus prometheus. A conclusão foi clara: não há base morfológica suficiente para essa classificação.
Como a investigação de Little Foot colocou A. prometheus em xeque?

No novo estudo, os pesquisadores compararam detalhadamente a anatomia do espécime StW 573 (Little Foot) com fósseis atribuídos a Australopithecus africanus e com o único exemplar associado a A. prometheus: um fragmento craniano conhecido como MLD 1.
Para isso, a equipe utilizou um scanner 3D de alta resolução, criando reconstruções digitais precisas do StW 573, do MLD 1 e de fósseis de A. africanus. A análise revelou ao menos cinco diferenças anatômicas, envolvendo a parte posterior do crânio, a crista sagital (elevação óssea associada à musculatura da mastigação), o plano da nuca e as suturas ósseas.
Em entrevista ao The Guardian, o pesquisador-líder do estudo, Jesse Martin, da Universidade La Trobe, na Austrália, explicou que, “quando se encontram diferenças na base do crânio, elas têm mais chance de indicar espécies diferentes, porque essa região evolui lentamente. Todas as diferenças que identificamos estão ali”, afirmou.
Os autores perceberam que o MLD 1 é muito mais parecido com os fósseis clássicos de A. africanus, reforçando a tese de que A. prometheus não se sustenta como uma espécie independente, mas como um nome alternativo para uma espécie já reconhecida desde 1924.
Isso significa que, ao tentar encaixar corretamente o Little Foot, os pesquisadores acabaram expondo a fragilidade do próprio conceito de A. prometheus, ao mostrar que o fóssil MLD 1 não apresenta características suficientes para sustentar essa espécie como distinta.
Seria o Little Foot uma nova espécie na árvore genealógica humana?
Mesmo não sendo esse o seu objetivo, o estudo acabou criando um paradoxo científico. Como testar a hipótese de que o espécime fóssil StW 573 (Little Foot) deve ser atribuído taxonomicamente a Australopithecus prometheus, se essa designação não representa, em si, uma espécie autônoma, mas apenas outro nome para A. africanus?
E, para aprofundar ainda mais o debate, os autores concluíram que, além de não poder ser classificado como A. prometheus, o espécime StW 573 também apresenta diferenças anatômicas importantes em relação aos demais fósseis atribuídos a A. africanus. Isso leva à questão: estaríamos diante de uma nova espécie?
Esse “plot twist” científico pode ter um impacto na paleontologia, que vai além de uma simples disputa de nomes. Ele destaca a dificuldade de classificar espécies a partir de fósseis fragmentários e reforça a importância de critérios rigorosos — e mais modernos — na taxonomia evolutiva. Mesmo fósseis mais antigos podem ter muito a nos revelar.
No próprio artigo, os autores sugerem: “É mais apropriado que uma nova espécie seja nomeada pela equipe de pesquisa que passou mais de duas décadas escavando e analisando o notável espécime de Little Foot. Esperamos que eles vejam nossa sugestão a esse respeito como um conselho bem-intencionado”, concluem.
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