No último dia 28 de agosto, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acatou recomendação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e incluiu três novas hidrovias estratégicas no Programa Nacional de Desestatização (PND). A medida, segundo o órgão colegiado federal, visa reduzir custos logísticos e modernizar a infraestrutura de transporte fluvial.
O Metrópoles conversou com especialistas que apontam as vantagens, mas alertam para os riscos de impacto em áreas sensíveis, em especial no dia a dia de comunidades tradicionais que dependem dos rios para acessar serviços básicos.
Na lista de empreendimentos incluídos estão as hidrovias do Rio Madeira; do Rio Tocantins; e do Rio Tapajós. Além dessas, outras já estavam presentes, como as do Rio Paraguai, a barra norte do Rio Amazonas e a Lagoa Mirim.
Como funciona o processo de concessão de uma hidrovia?
- A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) realiza estudos ambientais, sociais e econômicos para avaliar a viabilidade da concessão (dragagem, derrocamento, sinalização e outros).
- Na sequência, é realizada uma consulta pública com comunidades locais e empresas, para colher opiniões sobre o projeto.
- Depois, o governo federal publica um edital com as regras para concessão, com tarifas, investimentos obrigatórios, além de garantias ambientais e sociais.
- O próximo passo é o leilão, onde as empresas interessadas poderão disputar o direito de operar a hidrovia. A vencedora será aquela que apresentar a melhor proposta com base nos critérios do edital.
- A concessionária que assumir a hidrovia terá a obrigação de investir, manter e operar a hidrovia, inclusive com a cobrança de tarifas dentro dos limites estabelecidos. Todo esse processo será acompanhado pela Antaq.
O processo mais avançado de concessão das hidrovias é a do Rio Paraguai, que perpassa por trecho entre Corumbá (MS) e a Foz do Rio Apa, no município de Porto Murtinho (MS), e o leito do Canal do Tamengo, também em Corumbá.
Com a concessão, serão realizados serviços como dragagem (retirada de materiais do fundo do rio), construção de galpão industrial, aquisição de draga, com um investimento previsto nos primeiros anos de R$ 63,8 milhões.
Vale lembrar que concessão não é a venda do rio para iniciativa privada. O Estado apenas transfere as operações e os investimentos para as empresas, que poderão explorar o serviço por um tempo definido e com base nas regras acordadas.
“Como a gente tem a concessão de uma rodovia que você tem lá a concessionária, que vai cuidar da estrada, vai cuidar que o asfalto esteja direitinho, que tem ali serviço de atendimento. Em caso de acidente, vai fazer toda a gestão da rodovia. A mesma coisa é na hidrovia, só que aí são os rios”, explica Márcio Monteiro Reis, professor de direito administrativo do Ibmec RJ.
Márcio Monteiro acrescenta que essas concessão poderão trazer diferentes benefícios, sendo a segurança um deles. Segundo ele, o transporte hidroviário, atualmente, não acontece durante o período da noite, em decorrência da fata de iluminação. Com a transferência das obrigações para o setor privado, “uma sinalização mais eficiente, iluminação, você permitiria também transporte com segurança à noite”.
Benefícios e riscos
Marcus Quintella, diretor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Transportes, aponta que a concessão desses rios irá, em especial, trazer benefícios para o setor agrícola da região Norte, onde há dificuldades para o escoamento da produção.
“Redução dos custos logísticos, menos poluição, descongestionamento rodoviário. Porque, a partir do momento que você tira a carga das rodovias, a carga que faz a média longa distância, você está tirando o caminhão. Então, você está tirando de cada comboio de barcaça, pode tirar 400, 500 caminhões da rodovia”, explica Marcus Quintella.
Apesar da perspectiva de investimento e avanços no processo de escoamento de produção agrícola, especialistas alertam a respeito dos impactos sociais e ambientais, com a necessidade de regras claras para não prejudicar a vida das comunidades locais.
Das seis hidrovias que estão previstas para concessão, quatro estão localizadas na região Norte, onde se concentra 44,48% da população indígena brasileira, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“As concessões podem aumentar tarifas, afetando diretamente os ribeirinhos e pequenos produtores. Se houver aumento nos pedágios aquaviários ou de taxas portuárias, sem dúvida os mais pobres serão mais afetados. Também é possível ter impactos no meio ambiente, pois a maior movimentação de cargas pode exigir mais obras de dragagem”, pontua Patrícia Iglecias, professora e superintendente de gestão ambiental da Universidade de São Paulo.
No caso da concessão da Hidrovia do Rio Paraguai o projeto estabelece, pré-leilão, a cobrança de até R$1,27 por tonelada de cargas, sendo o transporte de passageiros ou de carga de pequeno porte isentos da cobrança.
Já em relação aos impactos ambientais, Renata Utsunomiya, que é assessora técnica do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura e Justiça Socioambiental, adverte para a liberação de sedimentos nos rios que podem contaminar os peixes da região, afetando a pesca das comunidades.
“Os pedrais são ambientes de refúgio e berçário de peixes que são explodidos nos derrocamentos, com a morte de peixes e contaminação pelos explosivos. Além disso, a ampliação do uso das hidrovias está necessariamente associada à ampliação de portos, que são vetores de expansão do desmatamento e conflitos territoriais na Amazônia”, acrescenta Renata.
Apesar das críticas ambientais e sociais a respeito da concessão das hidrovias, o debate avança a menos de dois meses para a 30ª Conferência das Partes (COP30), prevista para acontecer em novembro, em Belém. O evento da Organização das Nações Unidas (ONU) visa a discussão de medidas para tentar conter o avanço das mudanças climáticas, além do respeito às comunidades tradicionais.
Fonte: Metrópoles