terça-feira, outubro 8, 2024

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Josué, acreano, ex-piloto de ambulância, e a experiência “surreal” na rota de ônibus mais longa do mundo

Por Pietra Carvalho

Do UOL São paulo

Em uma plataforma na rodoviária do Tietê, em São Paulo, passageiros aguardavam com muita expectativa na bagagem. Eles encarariam milhares de quilômetros de estrada em uma rota de ônibus que, orgulhosamente, se define como “a mais longa do mundo”.

Seis mil quilômetros separam o Rio de Janeiro de Lima, no Peru. A paradinha estratégica em São Paulo é apenas uma das 30 do roteiro, que demora cinco dias e atravessa paisagens que vão da neblina paulistana ao verde amazônico, passando pela Cordilheira dos Andes.

A Transacreana, com base em Rio Branco, é a responsável desde abril pela operação do trecho — que, no passado, entrou para o Guinness como a viagem de ônibus mais longa do mundo.

E Josué Ribeiro, de 40 anos, é um dos que assume o comando da cabine do ônibus. Sua experiência não poderia ser melhor para uma viagem cheia de surpresas.

Ex-técnico de enfermagem, ele abandonou a área da saúde há 16 anos, depois de fazer a vida “pilotando” ambulâncias. Agora, alterna 15 dias na estrada com 15 dias em casa, em Rio Branco.

A viagem, claro, não é feita sozinha. Josué e colegas se revezam em turnos de quatro horas, com três paradas mais longas por dia.

“Fiz isso porque gosto de viajar, sempre gostei, mesmo quando trabalhava na saúde no Acre, as férias sempre foram de viagem de carro com a minha família”, diz ele.

Antes de encarar a rota Rio — Lima, Josué já tinha começado a carreira internacional, mas de forma mais modesta. Ele ia de Rio Branco a Porto Maldonado, no Peru, em uma viagem de 530 km.

Mal da altitude Outros trechos, no entanto, não são capazes de preparar os profissionais para os desafios impostos pelas estradas que vão até Lima, construídas em serras que castigam os profissionais com o “mal da altitude”.

Cusco, no Peru, por onde o ônibus passa, fica mais de 3.300 metros acima do nível do mar, em meio aos Andes peruanos. O ar rarefeito, com menos oxigênio, causa sintomas desagradáveis como dor de cabeça, enjoo, dificuldade de respiração e fraqueza. Nem a mulher de Josué, acostumada a viajar com ele, encara a rota. “Formei minha família já motorista e minha mulher gosta de viajar também, então quando está de férias ela viaja comigo. Só para o Peru que ela não vai, porque sente muita enxaqueca.”

Sempre tem dois motoristas na frente, caso quem estiver no volante passe mal, principalmente na parte da Cordilheira. Tem umas serras que estão a 4 ou 5 mil metros de altitude e às vezes dá náuseas, o pessoal fica tonto. Na primeira vez que fui, senti, mas não foi nada tão extremo. Vamos nos acostumando com o passar dos dias.

Outro desafio, segundo o motorista, é a segurança nas estradas no Peru, cheias de pontos cegos pelo relevo acidentado. É preciso abusar das buzinas nas curvas para alertar quem vem do outro lado. Apesar das dificuldades, as vantagens superam os perrengues, segundo o motorista.

Apaixonado pelas estradas, Josué entende bem por que os clientes escolhem viajar de ônibus, mesmo que o trecho de cinco dias seja muito mais cansativo do que as cinco horas de voo entre São Paulo e Lima.

“A visão é única. Na primeira viagem nessa rota, teve cliente que faria a ida de ônibus e voltaria de avião, mas gostou tanto que decidiu retornar com a gente também. É satisfatório saber que as pessoas estão vendo coisas novas. Eles querem muito ver as serras, filmar a Cordilheira, a mudança da parte da Amazônia para a parte que já é deserto. É surreal”, diz.

Rostos e sotaques Diversidade não é só uma característica do que se vê pelas janelas, mas também dos passageiros que encaram o trecho. São peruanos que querem passar uma temporada no país onde nasceram ou voltar para a terra natal e brasileiros aventureiros, com mochila nas costas.

Parte dos peruanos que embarcava no Tietê em uma noite fria do fim de abril já era “veterana” desse tipo de viagem: eles costumavam embarcar com outra empresa, a Ormeño, que decretou falência em 2022. Uma dessas clientes antigas, Vanessa esperava para começar sua última viagem para a terra natal. Acompanhada dos dois filhos, de 9 e 4 anos, a mulher decidiu voltar de vez ao Peru após sete anos em São Paulo trabalhando como costureira e criando as crianças sozinha. Vim com o pai deles, mas depois nos separamos e cada um tomou seu rumo. Meu ex-marido foi embora e fiquei sozinha. Demoramos para nos acostumar, por causa do idioma e tudo mais, mas pouco a pouco fomos nos adaptando. Depois, minha filha nasceu aqui e, apesar de ter dias e dias, eu gostei muito do Brasil.

De mudança… E não seria melhor ir de avião? Segundo ela, a empreitada rodoviária vale mais a pena do que a viagem de avião. E um motivo impera entre os viajantes. Todos os passageiros peruanos ouvidos por Nossa destacam a possibilidade de embarcar com até 50 kg de bagagem no ônibus, um direito claramente aproveitado pelos viajantes, “estacionados” na fila de embarque e rodeados por malas e outros pacotes. … a lembrancinhas Sozinho na fila de embarque, Rolan Arquimedes Bardales também aguardava para voltar ao país em que nasceu, mas para uma temporada de apenas dois meses. Há 18 anos em São Paulo, ele se diz “acostumado” à vida na capital paulista e montou uma bagagem lotada de lembrancinhas brasileiras para os parentes que deixou para trás, incluindo sete irmãos. O reencontro de Bardales, que trabalha como operador de telemarketing em espanhol, acontece 12 anos após a última ida dele ao Peru — também de ônibus.

Banho só nas paradas Os perrengues à vista preocupam pouco os passageiros, já escaldados na arte de se virar dentro de um busão. Já peguei ônibus que não tinha banheiro, não tinha água, não tinha wi-fi, então só de saber que tem tudo isso já é melhor Vanessa No segundo andar do ônibus da Transacreana, os passageiros têm um filtro de água. Já o banheiro fica no térreo e conta apenas com privada e uma pia pequena. Em uma das fileiras de leitos, alguns viajantes contam com cortinas que ajudam a isolar os assentos. Para tomar banho, só nas paradas em postos de serviço. São três por dia, para higiene e refeições. As paradas para almoço e jantar, de cerca de uma hora, são as recomendas pela empresa para quem quiser usar o chuveiro. Já a primeira parada do dia, para o café da manhã, é a mais apressada — dura só 30 minutos.

“É cansativo, mas como o ônibus é novo, tem mais comodidade. Antes não tinha isso. Antigamente ele saía daqui fazendo escalas longas, tinha de trocar de ônibus. Mas indo direto é bem mais fácil”, dizia Rolan, pouco antes de embarcar em São Paulo.

Em meio aos peruanos, que preencheram boa parte dos 43 assentos do ônibus, dois homens chamavam a atenção: um levava um mochilão nas costas e o outro, mais velho, parecia preparado para uma aventura, com direito a chapéu de pescador às 20 horas. A jornada da dupla começou em Porto Alegre, onde pai e filho, moradores da capital gaúcha, alimentaram o sonho de pegar a linha de ônibus mais longa do mundo. O empresário Ricardo Preussler, de 46 anos, conta que ele e o pai, de 72, tinham o plano de chegar a Bogotá, mas souberam apenas chegando ao Tietê sobre o fim de uma antiga linha que fazia este percurso. Então, a gente vai fazer até Cusco, o que leva uns três dias e meio, e de Cusco vamos à Colômbia, também por estrada. A ideia é conhecer a parte terrestre, as paisagens. A gente já foi para a Patagônia de ônibus mas, dessa vez, podemos fazer a viagem aos pouquinhos Ricardo Preussler e o pai vão a Cusco de ônibus e, de lá, partem para a Colômbia Imagem: Arquivo pessoal Ricardo conta com sua experiência em mochilões de meses por outros continentes para aguentar a empreitada. “Estou acostumado a fazer mochilão, não muito de ônibus, mas de trem. Já fiz bastante na Ásia. O desconforto a gente sabe que vai ter um pouco, mas por outro lado vai conseguir ver paisagens, atravessar a Cordilheira dos Andes de ônibus. Via terrestre, dá para ver uma paisagem que de avião.

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