*O artigo foi escrito por Justin Stebbing, professor de ciências biomédicas da Universidade Anglia Ruskin, na Inglaterra, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
A cada poucos meses, uma nova “cura milagrosa” para o câncer vira tendência nas redes sociais. De superalimentos e suplementos a dietas radicais, as promessas são sempre ousadas — e quase sempre enganosas. A última afirmação sugere que um jejum de água de 21 dias pode “matar de fome” as células cancerosas e fazer com que o corpo se cure sozinho. Parece simples, até empoderador: pare de comer e seu corpo fará o resto.
Mas a biologia raramente é tão simples assim. O câncer não é uma doença única, e o metabolismo não alterna facilmente entre “doente” e “saudável”. Embora o jejum possa afetar a forma como as nossas células utilizam energia, não há evidências científicas de que possa erradicar tumores. Na verdade, o jejum prolongado pode ser perigoso, especialmente para pessoas já enfraquecidas pelo câncer ou pelos seus tratamentos.
Embora o jejum possa influenciar o metabolismo, a imunidade, não há [evidências confiáveis] de que o jejum prolongado com água possa tratar ou curar o câncer.
O jejum, em suas diversas formas — desde o jejum intermitente até a restrição calórica de curto prazo —, demonstrou em estudos laboratoriais influenciar a forma como as células se reparam e gerenciam a energia.
Pesquisas de 2024 mostram que o jejum suprime temporariamente a atividade das células-tronco intestinais, seguida por uma poderosa fase regenerativa assim que os alimentos são reintroduzidos. Esse rebote no crescimento das células-tronco é impulsionado por uma via conhecida como mTOR, que promove a síntese de proteínas e a proliferação celular.
Embora essa regeneração ajude na recuperação dos tecidos, ela também pode criar uma janela vulnerável na qual mutações prejudiciais podem ocorrer mais facilmente, aumentando o risco de formação de tumores.
A maioria das pesquisas sobre os efeitos do jejum têm se concentrado em jejuns intermitentes ou curtos com duração entre 12 e 72 horas, e não em jejuns extremos apenas com água que se prolongam por semanas. Um jejum de água de 21 dias, como promovido em alguns círculos de bem-estar, acarreta sérios riscos. O jejum prolongado pode causar desidratação, desequilíbrios eletrolíticos, pressão arterial perigosamente baixa e perda muscular.
O câncer em si muitas vezes leva à desnutrição, e o jejum pode acelerar a perda de peso (caquexia), enfraquecer o sistema imune e aumentar a suscetibilidade a infecções. Muitos pacientes com câncer estão passando por quimioterapias que exigem nutrição adequada para manter a função dos órgãos e metabolizar os medicamentos com segurança. Combinar esses tratamentos com jejum prolongado pode amplificar a toxicidade, retardar a recuperação e piorar a fadiga.
Existem estudos clínicos em andamento e são cuidadosamente monitorados por motivos de segurança.
O jejum continua a intrigar os cientistas porque ativa mecanismos ancestrais de sobrevivência. Durante a escassez de alimentos, o corpo desencadeia processos como a autofagia, em que as células reciclam componentes danificados. Esse processo pode reduzir a inflamação e melhorar a saúde metabólica em estudos com animais.
Mas, no câncer, a história é muito mais complexa. As células cancerosas são engenhosas. Elas podem se adaptar ao jejum encontrando fontes alternativas de combustível, às vezes superando as células saudáveis sob estresse nutricional. Longos períodos sem nutrição também podem enfraquecer as células imunes que normalmente detectam e atacam tumores.
O estudo sobre o jejum de 2024 demonstra essa dualidade. O jejum pode redefinir o metabolismo, mas a realimentação ativa rapidamente vias de crescimento, como a mTOR. Em células saudáveis, isso ajuda a reparar os tecidos. Em células que já apresentam danos no DNA ou mutações precoces, pode incentivar a progressão maligna. Isso torna o jejum um fator de estresse biológico complexo, em vez de uma intervenção inofensiva ou terapêutica.



Segundo o Instituto Nacional de Câncer, para cada ano do triénio 2020/2022 serão registrados cerca de 625 mil casos da doença no Brasil
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Extremamente comum no país, o câncer de pele é caracterizado pelo aparecimento de tumores na pele em formato de manchas ou pintas com formatos irregulares. Relacionada à exposição prolongada ao sol, exposição a câmeras de bronzeamento artificial ou por questões hereditárias, a doença pode ser tratada através de cirurgias, radioterapia e quimioterapia
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O câncer de mama é causado pela multiplicação descontrolada de células na mama. Apesar de ser comum em mulheres, a enfermidade também pode acometer homens. Entre os sintomas da doença estão: dor na região da mama, nódulo endurecido, vermelhidão, inchaço e secreção sanguinolenta. O tratamento envolve cirurgia para retirada da mama, quimio, radioterapia e hormonioterapia
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Mais frequente em homens, o câncer de próstata apresenta os seguintes sintomas: sangue na urina, dificuldade em urinar, necessidade de urinar várias vezes ao dia e a demora em começar e terminar de urinar. Cirurgia e radioterapia estão entre os tratamentos da doença
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Embora possa estar relacionado com hipertireoidismo, tabagismo, alterações dos hormônios sexuais e diabetes, por exemplo, o câncer de tireoide ainda não é bem compreendido por especialistas. Apesar disso, tratamentos contra a doença envolvem terapia hormonal, radioterapia, iodo radioativo e quimioterapia, dependendo do caso
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O câncer de pulmão é um dos tipos com maior incidência no Brasil. Relacionado ao uso ou exposição prolongada ao tabagismo, tem como principais sintomas a falta de ar, dores no peito, pneumonia recorrente, bronquite, escarro com sangue e tosse frequente. A doença é tratada com quimioterapia, radioterapia ou/e cirurgia
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No Brasil, o carcinoma epidermoide escamoso tem a maior incidência entre os canceres de estômago. Os tratamentos envolvem cirurgia ou radioterapia e quimioterapia
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O câncer de estômago é diagnosticado após a identificação de tumores malignos espalhados pelo órgão e que podem aparecer como úlceras. Relacionado à infecções causadas por Helicobacter Pylori, pela presença de úlceras e de gastrite crônica não cuidada, por exemplo, a doença pode causar vômito com sangue ou sangue nas fezes, dor na barriga frequente e azia constante
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O câncer de colo de útero tem como sintomas sangramento vaginal intermitente, dor abdominal relacionada a queixas intestinais ou urinárias e secreção vaginal anormal. O tratamento envolve quimio, radioterapia e cirurgia
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O câncer de boca é uma doença que envolve a presença de tumores malignos nos lábios, gengiva, céu da boca, língua, bochechas e ossos. É mais comum em homens com mais de 40 anos e tem como sintomas feridas na cavidade oral, manchas na língua e nódulos no pescoço, por exemplo. O tratamento envolve cirurgia, quimio e radioterapia
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O mito da “desintoxicação”
Grande parte do apelo popular do jejum vem do mito da “desintoxicação” que podem ser eliminadas. Ele se desenvolve por meio de alterações genéticas que causam o crescimento descontrolado das células. Nenhuma pesquisa demonstrou que o jejum pode eliminar células cancerosas ou reduzir tumores em seres humanos.
Estudos controlados observaram apenas alterações metabólicas de curto prazo que podem influenciar a inflamação ou a sinalização da insulina. Esses efeitos podem ajudar a reduzir os fatores de risco de longo prazo para doenças crônicas, mas não revertem o câncer depois que ele se desenvolve.
A promessa e os limites da pesquisa metabólica
Existe interesse científico em como o metabolismo afeta o câncer. Pesquisadores estão explorando se a restrição calórica ou dietas cetogênicas direcionadas poderiam tornar as células tumorais mais sensíveis ao tratamento, protegendo as células saudáveis. Esses estudos ainda estão em estágios iniciais e se concentram na precisão, não na privação. Nenhum deles envolve privar o corpo de todos os nutrientes por semanas.
Afirmações sensacionalistas confundem a linha entre hipótese e prova, dando falsas esperanças a pacientes vulneráveis ao selecionar fatos, mencionando o papel do jejum na reparação celular e omitindo o detalhe crucial de que a maioria das descobertas vem de modelos animais, não de testes em humanos. Para alguém em tratamento contra o câncer, tentar um jejum extremo sem supervisão pode atrasar cuidados essenciais, piorar os efeitos colaterais ou até mesmo colocar sua vida em risco.
O jejum é um fator de estresse fisiológico. Em doses pequenas e controladas, ele pode desencadear processos adaptativos que beneficiam a saúde. Em excesso, especialmente durante uma doença, ele pode causar danos.
Um jejum de água de 21 dias não é um tratamento plausível nem seguro para o câncer. Pesquisas sobre o jejum nos ajudam a entender como as células respondem à nutrição e ao estresse, mas esse conhecimento ressalta a complexidade do jejum, em vez de apoiá-lo como terapia.
Embora uma nutrição equilibrada, hidratação, atividade física regular e sono adequado possam apoiar a resiliência durante a terapia do câncer, nada substitui os tratamentos médicos projetados para atingir a biologia do tumor. O tratamento do câncer requer terapias direcionadas e baseadas em evidências, como quimioterapia, radioterapia, cirurgia e imunoterapia.
A pesquisa sobre o jejum está nos ajudando a compreender as profundas conexões entre o metabolismo e a doença, mas isso é muito diferente de curar o câncer com um copo de água e força de vontade.
É compreensível que as pessoas queiram ter controle quando enfrentam algo tão assustador como o câncer. A busca por alternativas geralmente vem do medo, da frustração ou do desejo de evitar tratamentos dolorosos. Mas a esperança nunca deve se basear em informações erradas.
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Fonte: Metrópoles





